Gênios de papel
De como Shakespeare, uma mente poderosa,
criou personagens também inteligentíssimos
criou personagens também inteligentíssimos
João Gabriel de Lima
"Para ter vida após a morte não é necessário
ter vivido." Esse paradoxo, cunhado por Samuel Butler, escritor inglês do
século XVII, é citado de passagem em Shakespeare – A
Invenção do Humano (Objetiva, 896 páginas, 64,90 reais),
do crítico literário americano Harold Bloom. Poderia ser, no entanto, a
epígrafe do livro. A Invenção do Humano é sobre seres que nunca existiram, mas ainda assim têm vida eterna: os
tipos criados por William Shakespeare. Bloom é o autor do polêmico Cânone Ocidental, em que lista os melhores escritores de
todos os tempos neste lado do mundo. Em A Invenção do Humano ele faz uma espécie de cânone dos personagens shakespearianos. Esta não
é a intenção declarada do livro. Em tese, ele se compõe de pequenos ensaios
sobre as principais peças do autor. Só que Bloom pouco se detém no enredo das
obras. O ensaio dedicado a Henrique IV é, na realidade, sobre o personagem Falstaff. O texto sobre a comédia Como Gostaisdisseca a figura de Rosalinda. O capítulo intitulado Otelo se concentra no funcionamento da mente
do vilão Iago. À medida que o livro evolui, Bloom compara uns personagens com
os outros e, disfarçadamente, os hierarquiza. É uma obra erudita, porém de
leitura fluente. O autor é um ensaísta à moda antiga. Evita o jargão da
universidade e é deliciosamente sarcástico na defesa de seus pontos de vista.
Ainda se dá ao trabalho de embutir pequenas sinopses das peças nos capítulos,
pensando no leitor que não está familiarizado com a obra do poeta inglês.
Para Bloom, o que faz a diferença em Shakespeare é que ele, dono de um intelecto superior, criou personagens igualmente inteligentíssimos. Professor universitário em Yale e ácido crítico do meio acadêmico, ele escreve que nunca encontrou entre seus pares gente com o QI comparável aos de Hamlet ou Falstaff. Antes de ir à lista propriamente dita, é necessário saber o que Bloom considera um personagem "intelectualmente superior". Seria aquele capaz de refletir sobre si próprio, na interação com os outros e, a partir daí, "crescer" dentro da peça, modificando sua maneira de pensar e de agir. Há vários tipos nessas condições espalhados pelas peças do autor, mas de acordo com Bloom há alguns que se destacam pela agudeza da mente. No centro do cânone estariam Hamlet e Falstaff. Há um terceiro nome muito citado em A Invenção do Humano, que constitui uma surpresa: Rosalinda, da comédia Como Gostais. O que esses três personagens teriam em comum? Correndo o risco de simplificar demais, poderíamos resumir numa palavra: ironia.
Falstaff é o soldado que é irônico em relação à
guerra. Por mais que se esforce para ganhar batalhas, acha que a chamada
"honra militar" não vale nada em comparação com os prazeres terrenos.
É sua a famosa frase: "Não quero glória. Dêem-me vida". Já Rosalinda
é a mulher apaixonada que é irônica em relação ao amor. Sua filosofia de vida
pode ser expressa, também, por uma linha da peça: "Os homens têm morrido
de tempos em tempos e os vermes os têm devorado, mas não por amor". Por
saber que ninguém perece dessa doença, ela não perde tempo sofrendo e usa o
cérebro para se sair bem com seus pretendentes. O escritor irlandês George
Bernard Shaw achava que Rosalinda se destacava no teatro elizabetano porcortejar o homem em vez de
esperar ser cortejada. Harold Bloom vai além. Ele escreve que Rosalinda é nada
menos do que "a mais extraordinária e convincente representação de uma
mulher na literatura ocidental". Falstaff e Rosalinda usam sua capacidade
de reflexão não apenas para reinventar-se, aprendendo a lidar, respectivamente,
com as ilusões da guerra e do amor. Eles modificam também outros personagens.
Falstaff é o preceptor informal do príncipe Hal, que numa peça posterior irá se
transformar no sábio rei Henrique V. Rosalinda usa roupas masculinas para
ensinar ao homem que deseja, Orlando, como gostaria de ser amada. É um dos
momentos mais divertidos da poesia dramática em todos os tempos.
Lutas de cachorros – E Hamlet? Hamlet seria o mais irônico de todos, alguém que não
acredita em nada, nem nas próprias palavras. Dado à permanente reflexão,
elabora teorias brilhantes sobre os assuntos mais variados. Não é à toa que ele
tem sete monólogos na peça e suas falas ocupam dois terços do mais longo dos
textos de Shakespeare. É o personagem que mais se metamorfoseia durante a ação
– passa da melancolia imóvel do primeiro ato para uma espécie de
"ceticismo desprendido" no quinto, quando participa da carnificina
final. Bloom não disfarça, no livro, sua paixão por Shakespeare e pelos tipos
que ele criou. É um fã assumido. Gosta dos autores que citaram Shakespeare de
maneira positiva, como o filósofo alemão Friedrich Hegel, e enxovalha os que
não o consideravam tão bom assim, mesmo que tenham o cabedal de T.S. Eliot, o
maior poeta inglês do século XX. Investe contra as montagens modernosas das
peças de Shakespeare e os que tentam aplicar à análise de suas obras os mesmos
parâmetros da cultura pop contemporânea. Bloom escreve que é impossível
comparar o escritor inglês com a cantora Madonna porque a "arte" que
ela faz seria correspondente, no século XVI, aos circos de horrores que
mostravam lutas de cachorros. Às vezes o ensaísta americano exagera. Ele
escreve, por exemplo, que o autor de Hamlet é melhor do que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche como pensador e
que seria um psicanalista infinitamente superior ao austríaco Sigmund Freud
caso a psicanálise já existisse em seu tempo. Ele contraria ponto por ponto a
máxima acadêmica segundo a qual um crítico deve manter distanciamento em
relação àquilo que critica. Dado o caráter apaixonante de seu objeto de estudo,
no entanto, quem pode condená-lo?
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